A voz do mundo exterior que um dia nos levará ao paraíso, a metáfora perfeita para a nossa ânsia de liberdade e conexão com as nossas raízes, é encarnada nesta história por essa imensa figura, o avatar perfeito do líder…
A voz do mundo exterior que um dia nos levará ao paraíso, a metáfora perfeita para a nossa ânsia de liberdade e conexão com as nossas raízes, é encarnada nesta história por essa imensa figura, o avatar perfeito do líder inspirador, Paul Muad’ib, que paradoxalmente é tão só uma criação humana, uma história, e ele, sendo nada mais do que um homem usa a arma na sua mão: o desejo de liberdade e justiça de um povo para o seu propósito pessoal de vingança. Atormentado que está pelo seu destino, Muad’ib bebe a água da vida que lhe abre o olho interior, que o faz ver por fim a sua própria tragédia e o Apocalipse que se aproxima, que sente impossível de evitar, essa força imensa, ardente e poderosa que é a vontade de todo um povo ou nação. Paul olha nos olhos do Barão antes de lhe espetar a faca no pescoço e completar e seu arco, sabendo no entanto que o que começou já ninguém poderá alguma vez parar; é essa a parábola tremenda da obra de Herbert, e no seu pessimismo inerente, nos revemos, nós, humanos, nas nossas falhas, mesmo que movidos pelo mais nobre dos propósitos, a nossa humanidade, o ódio, a vingança, o medo, são a porta para as mais sórdidas atrocidades, para o totalitarismo, para a intolerância, para a morte.
“Dune” fala sobre esses homens, esses humanos, que um dia nos prometeram o paraíso, de Jesus Cristo a Spartacus, a obra final sobre a imensa abóbada de heróis corporizada na figura mítica de Muad’ib é um documento profundamente humano que apela à nossa compaixão por nós mesmos e pelo nosso desejo de liberdade, de justiça e de progresso, a base das sociedades modernas, é por outro lado uma fábula cautelar sobre as figuras messiânicas, sobre a embriaguez das religiões, e de não olhar a vida e o mundo como ele é, mas antes como num sonho acordado. Um filme central na cultura cinematográfica das últimas décadas, que figurará como um marco indelével na nossa cultura popular, até pela sua dimensão educativa e filosófica, pelas questões penetrantes que levanta e sobretudo pela mensagem comovente e sentida que o autor nos quer deixar. Absolutamente obrigatório, para ver com toda a família, e para depois ir até à beira mar, ou até casa, e falar sobre ele no que resta da noite. Cinema imenso, para ser vivido intensamente.
A ilusão da verdade
Escrito em: 2024-02-20
Não compliquem, bom cinema é isto: uma boa história, uma direção segura, um naipe de actores de eleição e um conjunto de artífices, desde o departamento de som até à direção de fotografia, que entrega a narrativa de forma eficiente…
Não compliquem, bom cinema é isto: uma boa história, uma direção segura, um naipe de actores de eleição e um conjunto de artífices, desde o departamento de som até à direção de fotografia, que entrega a narrativa de forma eficiente e intensa, de maneira que nos deixemos emergir nesta obra multi-camadas sobre a relatividade da verdade e da justiça; mais uma prova, se fosse preciso, da vitalidade dessa escola de virtuosismo e inovação que é a escola francesa de cinema, de onde emanam, volta e meia, “mise-en-cenes” que cortam com a norma e nos resgatam a pureza do fascínio da sétima arte. Aqui seguimos o percurso de uma personagem acossada pela suspeita de um homicídio que propositadamente nos é apresentada com pontas soltas, e cheios de dúvidas embarcamos no processo jurídico da busca pela verdade, ou melhor, na construção da verdade possível apartir dos cacos do dia do acontecimento; pelo meio há no entanto uma criança cega e o seu cão, testemunhas do acontecido, mas também eles mais uma névoa sobre o caso, e com o passar do tempo a sensação que fica é que a verdade é impossível e somos convidados a acreditar ou não na inocência da personagem principal.
Cinema de eleição, seguramente um dos melhores filmes do ano, e forte candidato aos óscares, onde poderá perfeitamente fazer a gracinha de amealhar o prémio para melhor actriz, após a soberba interpretação de Sandra Huller, “Anatomia de uma queda” é um filme absolutamente obrigatório para os amantes da sétima arte, sobretudo pela pureza da sua genialidade artística
Fujam da escuridão
Escrito em: 2024-02-03
Demorou mais de uma década a ver a luz do dia, e segundo os seus criadores no início era um projecto completamente louco, e por isso o que joguei no último mês é algo de delirante, excessivo, estranho e ao…
Demorou mais de uma década a ver a luz do dia, e segundo os seus criadores no início era um projecto completamente louco, e por isso o que joguei no último mês é algo de delirante, excessivo, estranho e ao qual é de facto impossível ficar indiferente. Acordei muitas vezes com aquelas olheiras depois de ter estado a jogar até às 4 e nem a Andreia Dias escapou a este mergulho no universo transloucado de Alan Wake 2, algo de verdadeiramente diferente e especial no mundo dos videojogos. Sam Lake sonhou esta ‘coisa’ inconcreta e diz ele q ainda não acredita que o conseguiu entregar ao fim de tanto tempo, de tantos problemas e desafios, e eu por mim lhe agradeço a lata de fazer uma piada de bom gosto, uma grande pedrada no charco como é este jogo que nos veste a pele de um escritor perdido entre o seu próprio mundo de pesadelo.
Um excesso ou delírio, depois de Cyberpunk 2077 e Baldur’s Gate 3, e de tudo q aconteceu entretanto, eis mais uma certeza de que os gamers como eu esperavam para carimbar o futuro na direção certa. Para jogar com a luz sempre acesa.
Missa à meia-noite
Escrito em: 2024-01-08
Mike Flanagan é uma daquelas espécies raras em vias de extinção (ou pelos vistos, não) com o talento e olho para os filmes de terror, um género ainda tão pop como na sua década de ouro, os anos 80, um…
Mike Flanagan é uma daquelas espécies raras em vias de extinção (ou pelos vistos, não) com o talento e olho para os filmes de terror, um género ainda tão pop como na sua década de ouro, os anos 80, um género tão imediato e sedutor, que se torna a receita básica para um blockbuster, muitas vezes com o mínimo investimento. Aqui há uns anos entregou o curioso “Doctor Sleep”, uma espécie de spinoff de “Shinning” de Kubrick, que não é brilhante, mas não compromete, com um naipe de actores de topo, como Ewan Macgregor e a bela Rebecca Fergusson, por exemplo, e uma história algo recambolesca, mas com o mérito de pelo menos estar feito com competência; e talvez essa mesma competência de conseguir entregar num género que vende e chega com facilidade às massas tenha feito de Flanagan quase um funcionário da Netflix, onde já vai na terceira produção que me lembre.
Há pouco tempo realizou o sucesso chamado “Queda da Casa Usher”, baseado no conto homónimo de Edgar Alan Poe, mas é este “Midnight Mass” que para mim acaba por ser o melhor cartão de visita deste autor que domina de facto a linguagem do género e garante por isso todos os seus tiques e clichés aos seus maiores fãs, mas a quem ainda falta aquele toque de midas e brilhantismo para o tornar de facto um autor de elite, apesar de ser óbvio o seu enorme talento. Casado com uma das mais belas actrizes da actualidade, Kate Siegel, que muito apropriadamente aparece em quase todos os seus filmes, dele esperamos sempre uma dose extra de bom gosto e competência que nos vai garantindo horas de imersão no mundo das bruxas, zombies, vampiros e outras entidades fantasmagóricas.
Arte e A.I.
Escrito em: 2023-11-15
Do filão ainda não muito escavado das histórias da ameaça da A.I.,e à semelhança da narrativa homónima de Assimov, a A.I. é aqui a vítima, a raça proscrita ao exílio (na china / Ásia) resistindo no seu reduto remoto ao…
Do filão ainda não muito escavado das histórias da ameaça da A.I.,e à semelhança da narrativa homónima de Assimov, a A.I. é aqui a vítima, a raça proscrita ao exílio (na china / Ásia) resistindo no seu reduto remoto ao genocídio dos humanos, apostados em restabelecer a ordem, depois de incriminar, injustamente, os robots de AI por um desastre nuclear. Interessante algum pendor masoquista de Hollywood em relação à espécie humana, sempre de maus fígados, gente básica e com sentimentos rasteiros, vingativa; diria que a horde de esquerda de Sanders fez alguma escola por entre os privilegiados do show biz, que retribuem aqui, como em Avatar, fazendo dos humanos uns pacóvios materialistas, colonizadores despóticos, oriundos de uma potência bélica imparável, apostada em erradicar a AI da face do planeta.
Gareth Edwards pega nesta história iminentemente política e veste-a visualmente de uma forma deslumbrante, apostando numa fotografia de cortar a respiração, obra também do próprio realizador, que segurou a câmara, uma FX3 da Sony de cerca de 5000 eur, que apesar de ainda distante dos bolsos da maioria, representa a excelência tecnológica que os fabricantes de cameras entregam hoje em dia aos entusiastas e profissionais da área; ” The Creator” foi filmado recorrendo ao engenho e criatividade, mais do que à carteira e o resultado irá com certeza fazer escola, atestando desde logo da importância histórica que este filme já tem. Quanto ao resto, notam-se algumas fragilidades narrativas, muita ponta solta e alguma falta de “nexo”, num filme que não é perfeito, que acaba por ser vítima da sua previsibilidade mas que não abala com isso o lugar de destaque que merece por tudo aquilo que representa. A ver, em especial pelos amantes da sétima arte.
Grande para quê?
Escrito em: 2023-08-10
A espaços brilhante, mas vítima das suas limitações auto-impostas, “Oppenheimer” ensina mais uma vez a velha máxima da engenharia: “If it works, dont fix it!”, mas vamos por partes: Nolan escreveu o que se pode considerar um biopic clássico sobre…
A espaços brilhante, mas vítima das suas limitações auto-impostas, “Oppenheimer” ensina mais uma vez a velha máxima da engenharia: “If it works, dont fix it!”, mas vamos por partes: Nolan escreveu o que se pode considerar um biopic clássico sobre a vida de um homem, mas aqui começam os problemas, pois a sua necessidade de meter tudo dentro de uma peça dramática de 3 h e tal provocou no arco desta personagem um desequilíbrio nítido no 3o acto, demasiado longo, com um incessante pingue pong entre Strauss e a comissão Macharthy (digamos assim) que funcionou de forma perversa como um anti-climax, pois a explosão na experiência “Trinity” deveria ter encerrado a história principal da personagem; foi um filme sobre o pai da bomba atómica que fomos ver? Ou sobre uma vítima da perseguição anti comunista do pós guerra? Em que ficamos Nolan? Penso que o realizador tentou respeitar a cronologia da história real e aquele último acto prova que continua ainda num try and error desde “Interstellar”, os filmes são bons, mas há sempre qq coisa no cinema de Nolan que falha de forma espectacular, a neste caso até nem foi só a carpintaria de argumento! Nolan é um pouco prisioneiro do seu dogma: a renúncia a efeitos digitais nos seus filmes está-lhe a causar óbvios problemas, e aquele plano ridículo em “Dunkirk” sobrevoando a praia com meia dúzia de filas de soldados na rebentação (basta consultar as imagens da época para percebermos a verdadeira escala que aquele plano deveria ter tido) foi só o prenúncio do que estava para vir, aqui em “Oppenheimer” não posso deixar passar a cena da detonação da experiência “Trinity”, que quase foi cómica de tão, digamos, “impotente”; nao sei quantas quilotoneladas de explosão reduzidas a um flash de luz, um rebentamento de meia duzia de latas de gasolina, tudo muito mal amanhado, com efeitos de som de partir a rir, planos escuros com lentes abertas ao máximo para desfocar o fundo, cortes para planos das personagens “admiradas”, enfim, quase cómico de tão mau, ficando óbvio que Nolan não teve planos suficientes para fazer da cena o que por ventura pretendia e teve de trabalhar com o que havia, e tudo porque “quase todos os efeitos especiais nos meus filmes são in-camera”, amigo… se é para ficar assim, acho que podes trazer o cgi em força. Sim os filmes modernos muitas vezes são uma espécie de orgia CGI, mas os efeitos visuais digitais existem por uma razão e resultam! If it works…DONT FUCKING FIX IT!!
E depois aquela mixagem de som… eu sinceramente pensava que era problema das cópias, mas desde “Interstellar” que noto problemas gritantes no som dos filmes do Nolan, as personagens são muitas vezes abafadas pela trilha sonora, filmes como “Tenet” simplesmente não funcionam em ATMOS por exemplo, não sei se é opção consciente de Nolan, numa tentativa tosca de aumentar o scope das cenas e a sua intensidade dramática, mas para mim aquilo é um desastre! E finalmente, vamos falar honestamente da opção pelos sensores de 70mm (IMAX)? Digam me lá quantos de vocês realmente “notam” que estão a ver um filme gravado para uma tela mais alta do que a vossa casa? De que serve aquele sensor gigantesco se depois não se tira vantagem usando, por exemplo, mais planos de grande angular (Kubrick, volta por favor!!), ou lentes de grande distância focal para se obter aquele efeito tridimensional de desfoque do plano de fundo? O director de fotografia de “Oppenheimer” serviu a história e compôs planos para contar a história que Nolan precisava, e bem, mas para isso o IMAX é “overkill”! É completamente desnecessário! Sendo que, na minha opinião o dinheiro poupado no departamento de efeitos visuais foi torrado nas despendiosas câmaras IMAX apenas para uma espécie de golpe publicitário, ajudando ao marketing do filme, nada mais. Gostei do filme, Cillian Murphy merece o óscar, Emily Blunt vai ser nomeada, e sobre isso falarei se calhar noutro post. Mas, foda-se Nolan, assim não pá. Assim, esquece.