O Rambo do século 21, literalmente, é um bonitão loiro, bodybuilder, com barba por fazer e um olhar vazio, um homem com uma missão de vingança, que usa técnicas furtivas que aprendeu num campo de batalha no Iraque ou na…
O Rambo do século 21, literalmente, é um bonitão loiro, bodybuilder, com barba por fazer e um olhar vazio, um homem com uma missão de vingança, que usa técnicas furtivas que aprendeu num campo de batalha no Iraque ou na Síria, dono de um auto-controlo pedatório ao serviço de um objectivo, uma temível máquina de destruição maciça. Ao contrário da personagem de Stallone, este soldado renegado não foi abandonado pelo sistema, não é propriamente um outcast, é mais do que isso: é um atraiçoado pelo sistema, uma arma que se volta para quem a empunhava ainda à pouco, e nesse sentido, “The Teminal List”, acaba por ser uma das mais interessantes propostas da moderna iteração do heroi solitário contra o mundo. Este soldado perde a sua família num sórdido esquema montado pela própria hierarquia que o devia defender, e a missão é por isso terrivelmente simples, uma vingança, que mais do que a simples reposição na ordem universal do seu mundo conservador, pátria + família, é subliminarmente, a ascensão ultra-conservadora do “dente por dente”, a admissão tácita, que apenas através da troca de uma vida por outra vida se alcança a verdadeira redenção, e essa é a permissa polémica de “The Terminal List” e, paradoxalmente, uma das razões para ser tão hipnóticamente irresistível. Para além das suas próprias lutas interiores entre o puro sadismo e uma violência hiperbólica, a história avança com lógica simples, nomes rasurados na parte de trás de um desenho feito pela filha do protagonista, competentemente interpretado por Chris Pratt, a lista terrível que é a razão de ser da sensação de irreversibilidade que atravessa toda a série.
Uma história simples e eficaz que agarra o espectador a um sentimento primitivo de identificação com a personagem do pai, essa figura que Rambo não era de facto, e que de uma forma até mitológica vinga a sua própria familia, a missão mais nobre que um soldado poder ter? Antoine Fuqua, que ainda há pouco nos entregou o excelente “The Guilty”, que podem ver na Netflix, escreve e começa esta série que a Amazon patrocinou e que é já pelo menos uma obra à qual é de facto impossível ficar indifrente. Para ver por quem tem estômago e alma revestidos a couro e com colete à prova de balas.
Nascidos da nossa lama
Escrito em: 2022-10-27
Segue assim estrada fora, cheia de nevoeiro liberal a anedota chamada Reino Desunido, aparelho de poder tomado de assalto por extra terrestres de outro mundo, multimilionários que nunca trabalharam, nasceram ricos, casaram com mulheres troféu e dão festas em sunsets…
Segue assim estrada fora, cheia de nevoeiro liberal a anedota chamada Reino Desunido, aparelho de poder tomado de assalto por extra terrestres de outro mundo, multimilionários que nunca trabalharam, nasceram ricos, casaram com mulheres troféu e dão festas em sunsets dourados, avatares paradoxais de uma certa nova ordem estranha de gente sem absolutamente nada para dizer, senão uma cartilha neo liberal idiota em que nem eles próprios acreditam, não sabem o que fazem, e não percebem bem o que dizem; passeiam-se em carros europeus topo de gama e anunciam que querem salvar o povo dele próprio. São o produto da raiva dos eleitorados e deste nosso mundo pornograficamente desigual em que poucos têm tudo e a maioria não tem nada; aterraram vindos do espaço sideral, do seu planeta fortaleza de muros altos, impenetrável à imundície do resto do planeta, são o pináculo da evolução e do sonho de Reagan e a evidência do seu fracasso por serem tão poucos, uma raça de machos alfas e mulheres 10 vestindo fatos Italianos e calçado feito no terceiro mundo, são sempre estrangeiros onde quer que estejam e falam um dialecto cifrado de merdas a ver com mercados, capital e cenas. São a nossa culpa e o nosso medo e foi da nossa lama que nasceram.
Deitar abaixo as estátuas
Escrito em: 2022-09-24
Nem sei bem por onde começar, mas dá vontade de dizer que” não foi para isto que me inscrevi”; relativizando podemos baixar o volume da coisa pensando que se trata apenas de um filme sobre uma sereia, um remake de…
Nem sei bem por onde começar, mas dá vontade de dizer que” não foi para isto que me inscrevi”; relativizando podemos baixar o volume da coisa pensando que se trata apenas de um filme sobre uma sereia, um remake de um filme de animação sobre uma sereia e um caranguejo que fala, sim ok, mas é a mensagem subliminar que se quer passar que a mim, pessoalmente, me irrita, ser igualitário por procuração ou porque a tabelinha de excel diz que é melhor e que pode vir mais pasta a mim soa-me a banha da cobra; dar uma de gajo de esquerda progressista e meter people negro em papeis principais de um clássico da Disney, e logo a “Pequena Sereia”, cuja personagem original (e original será para todo o sempre) só era ruiva e de olhos azuis, sabem o que me faz pensar? Faz-me pensar nos óscares por necessidade de uma qualquer consciência pesada numa indústria cheia de esqueletos no armário para com os negros, os gordos e os deficientes, tudo gente que não apareceu no cinema nem nas séries da Netflix durante décadas, e eu até percebo a necessidade de lavar a imagem….but, not like this.
Para mim isto é só ridículo e um desrespeito enorme pela herança cultural e autoral do nosso património colectivo, será que a Pequena Sereia foi mais um sintoma da nossa sociedade intrínsecamente racista e xenófoba, para qual parece que alguns apenas agora estão a acordar? Não me parece, e reescrever a Pequena Sereia em modo Nigga convida ao efeito oposto: 1,5 milhões de não-gostos na 1a release no youtube, uma boa parte deles provavelmente de gente negra. Não é nesta espécie de revisionismo histórico ou cultural que a dita, a minha dita esquerda social-democrata vai cimentar a sua mensagem ou propósito, mas sim no respeito pela nossa herança cultural histórica, que não deve nunca ser reescrita, mas entendida, interpretada e ensinada; não se deve deitar abaixo estátuas, isso é o que os ditadores fazem, mas sim olhá-las como o registo natural dos tempos, a pontuação inevitável do avanço civilizacional. Pintar a Ariel de castanho é uma versão enviesada deste propósito nobre das verdadeiras sociedades progressistas que devem lutar pela autenticidade e honestidade dos seus valores. Queriam uma sereia negra? Escrevessem uma nova história, um novo enredo para uma nova personagem; iria ver de bom grado, assim, vai ser apenas aquilo que de facto a Disney quis que fosse: um panfleto político que esmaga a obra e os seus artistas.
Ai, os homens!…
Escrito em: 2022-08-21
O tema da Masculinidade Tóxica foi aqui o mote para Garland descorrer em modo surrealista durante pouco mais de 100 minutos sobre os cabiantes de um relacionamento abusivo; o seu “Men” encerra por isso uma perspectiva polémica de um homem,…
O tema da Masculinidade Tóxica foi aqui o mote para Garland descorrer em modo surrealista durante pouco mais de 100 minutos sobre os cabiantes de um relacionamento abusivo; o seu “Men” encerra por isso uma perspectiva polémica de um homem, o autor, sobre o universo feminino; Harper, a nossa personagem, é, tal como quase todas as personagens principais nos filmes do realizador, uma pessoa circunscrita a um cenário opressivo, em “Aniquilação”, a floresta, em “Ex-Machina”, o edifício do cientista, e aqui uma casa num tradicional campo Inglês do interiror. A mulher contacta então com uma sucessão de homens, todos com o mesmo rosto (“os homens são todos iguais”), cada qual evidenciando um determinado traço da Masculinidade Tóxica de que Garland quer falar, que aqui é o monstro que assombra Harper, esse monstro simbolizado no Green Men, o homem verde, que no folclore tradicional Anglo-saxónico representa os ciclos ininterruptos de morte e renascimento: as gerações de homens que se sucedem infinitamente , assombrando a mulher/Harper com o mesmo menu de perversões, opressão e violência.
Da terra nasce o homem, dele nasce o menino que quer brincar, que deseja, dele nasce o abusador que oprime e maltrata, depois o padre que viola e julga, e no fim, afinal, todos apenas queriam o impossível: ser amados. A metáfora central do filme, que Garland, inteligentemente, desloca para o final climático, numa cena propositadamente difícil e incómoda para o espectador, revela essa sucessão de renascimentos, a cadeia imparável da opressão sobre as mulheres, elas que se revelam impotentes para amar como os homens precisam, ou querem ser amados. Sim, é polémico, controverso e até perverso, achar que a cadeia da opressão tem génese na natureza e causas no amor. “Men” é o novo de Alex Garland, obviamente, a não perder.
Na margem desse oceano cósmico
Escrito em: 2022-07-14
Não há nenhuma metáfora, nenhum adjectivo, palavra, ou provavelmente nenhuma frase que sequer se aproxime de poder descrever a magnitude da primeira foto de campo profundo do telescópio espacial James Webb que foi revelada pelo presidente Joe Biden; e neste…
Não há nenhuma metáfora, nenhum adjectivo, palavra, ou provavelmente nenhuma frase que sequer se aproxime de poder descrever a magnitude da primeira foto de campo profundo do telescópio espacial James Webb que foi revelada pelo presidente Joe Biden; e neste momento absolutamente histórico invocamos nomes como Isacc Newton, Stephen Hawking, Albert Einstein, Johannes Kepler, Carl Sagan e todos esses homens e mulheres imortalizados na memória desta espécie jovem e sedenta de deslumbramento, e perante o espanto que nos tolhe o coração, perante o vislumbre da imensa abóbada do desconhecido, este nosso regresso às origens, que tem tanto de comovente como de profético, cumprindo o nosso destino rumo às estrelas, emerge uma profunda humildade, um sentimento de união com o Cosmos, os braços de uma mãe, o nosso regresso.
O James Webb não vê como nós, capta radiação infravermelha, uma luz esticada pela própria expansão do universo, e dessa forma mergulha no oceano de tempo rumo às profundezas da escuridão infinita, tocando a face de Deus, lá longe, onde nos reencontramos, o universo que se interroga a ele próprio, como escreveu Sagan. Nesta imagem de galáxias a perder de vista, vemos estrelas e mundos como foram quando o nosso universo tinha pouco mais que alguns milhões de anos, vemos a gravidade numa escala sem precedentes: a forma como molda e deforma o próprio tecido do espaço, a lente gravítica de um cluster no centro da imagem é a assinatura de algo ou alguma coisa que apenas agora começamos a compreender; o denso mistério da gravidade é a nossa porta de entrada no oceano de tempo que nos levará até ao instante da criação.
O James Webb já nos dá respostas a perguntas que ainda nem sequer colocamos e a jornada só agora começou. Perante o coração apertado, perante o puro deslumbramento, sentimo-nos como uma criança naquele primeiro dia na margem de uma praia, olhando o mar, e lá longe, o horizonte. Lembram-se? Estamos de volta.
Cinema hipersónico
Escrito em: 2022-06-12
“Top Gun – Maverick” é um triunfo do cinema moderno. E Tom Cruise cimenta-se ainda mais como o mais valioso e competente produtor da actualidade. Depois dos excelentes “Rogue Nation” e “Fallout”, dois tratados conclusivos de como fazer filmes de…
“Top Gun – Maverick” é um triunfo do cinema moderno. E Tom Cruise cimenta-se ainda mais como o mais valioso e competente produtor da actualidade. Depois dos excelentes “Rogue Nation” e “Fallout”, dois tratados conclusivos de como fazer filmes de ação, acresce este segundo capítulo da saga do Capitão Pete “Maverick” Mitchell, agora sem o seu “Wing man” Iceman ( Val Kilmer num papel quase de cameo e com uma degradação física já indisfarçável ), liderando uma equipa de jovens ases numa missão impossível (não resisti), com flashes do passado, a dose certa e indispensável de azeite homo-erótico, nem faltou volleyball de praia, onde os homens tinham menos roupa do que a actriz, ok, e sobretudo uma sensibilidade incomum neste segmento de filmes, doseando correctamente a herança de Tony Scott com o pragmatismo do envelhecimento das personagens, a factura do tempo, e até o contexto político (excelente a introdução do paradigma da substituição dos pilotos pelos drones, por exemplo).
Mas “Top Gun – Maverick” é sobretudo um triunfo técnico; o filme foi rodado usando caças F-18 reais adaptados para poderem incorporar câmeras IMAX especialmente modificadas para o efeito, os actores voaram de facto nas aeronavas em maior parte das cenas, a esmagadora maioria dos efeitos que vemos foram práticos e feitos “in camera”, e, claro, é mesmo Tom Cruise que vemos pilotando a sua Kawasaki com o pôr do sol laranja em plano de fundo. Que mais podemos querer? Absolutamente imperdível, um espectáculo total e arrebatador, simbólico da excelência técnica do cinema actual.