O tema da Masculinidade Tóxica foi aqui o mote para Garland descorrer em modo surrealista durante pouco mais de 100 minutos sobre os cabiantes de um relacionamento abusivo; o seu “Men” encerra por isso uma perspectiva polémica de um homem,…
O tema da Masculinidade Tóxica foi aqui o mote para Garland descorrer em modo surrealista durante pouco mais de 100 minutos sobre os cabiantes de um relacionamento abusivo; o seu “Men” encerra por isso uma perspectiva polémica de um homem, o autor, sobre o universo feminino; Harper, a nossa personagem, é, tal como quase todas as personagens principais nos filmes do realizador, uma pessoa circunscrita a um cenário opressivo, em “Aniquilação”, a floresta, em “Ex-Machina”, o edifício do cientista, e aqui uma casa num tradicional campo Inglês do interiror. A mulher contacta então com uma sucessão de homens, todos com o mesmo rosto (“os homens são todos iguais”), cada qual evidenciando um determinado traço da Masculinidade Tóxica de que Garland quer falar, que aqui é o monstro que assombra Harper, esse monstro simbolizado no Green Men, o homem verde, que no folclore tradicional Anglo-saxónico representa os ciclos ininterruptos de morte e renascimento: as gerações de homens que se sucedem infinitamente , assombrando a mulher/Harper com o mesmo menu de perversões, opressão e violência.
Da terra nasce o homem, dele nasce o menino que quer brincar, que deseja, dele nasce o abusador que oprime e maltrata, depois o padre que viola e julga, e no fim, afinal, todos apenas queriam o impossível: ser amados. A metáfora central do filme, que Garland, inteligentemente, desloca para o final climático, numa cena propositadamente difícil e incómoda para o espectador, revela essa sucessão de renascimentos, a cadeia imparável da opressão sobre as mulheres, elas que se revelam impotentes para amar como os homens precisam, ou querem ser amados. Sim, é polémico, controverso e até perverso, achar que a cadeia da opressão tem génese na natureza e causas no amor. “Men” é o novo de Alex Garland, obviamente, a não perder.
Na margem desse oceano cósmico
Escrito em: 2022-07-14
Não há nenhuma metáfora, nenhum adjectivo, palavra, ou provavelmente nenhuma frase que sequer se aproxime de poder descrever a magnitude da primeira foto de campo profundo do telescópio espacial James Webb que foi revelada pelo presidente Joe Biden; e neste…
Não há nenhuma metáfora, nenhum adjectivo, palavra, ou provavelmente nenhuma frase que sequer se aproxime de poder descrever a magnitude da primeira foto de campo profundo do telescópio espacial James Webb que foi revelada pelo presidente Joe Biden; e neste momento absolutamente histórico invocamos nomes como Isacc Newton, Stephen Hawking, Albert Einstein, Johannes Kepler, Carl Sagan e todos esses homens e mulheres imortalizados na memória desta espécie jovem e sedenta de deslumbramento, e perante o espanto que nos tolhe o coração, perante o vislumbre da imensa abóbada do desconhecido, este nosso regresso às origens, que tem tanto de comovente como de profético, cumprindo o nosso destino rumo às estrelas, emerge uma profunda humildade, um sentimento de união com o Cosmos, os braços de uma mãe, o nosso regresso.
O James Webb não vê como nós, capta radiação infravermelha, uma luz esticada pela própria expansão do universo, e dessa forma mergulha no oceano de tempo rumo às profundezas da escuridão infinita, tocando a face de Deus, lá longe, onde nos reencontramos, o universo que se interroga a ele próprio, como escreveu Sagan. Nesta imagem de galáxias a perder de vista, vemos estrelas e mundos como foram quando o nosso universo tinha pouco mais que alguns milhões de anos, vemos a gravidade numa escala sem precedentes: a forma como molda e deforma o próprio tecido do espaço, a lente gravítica de um cluster no centro da imagem é a assinatura de algo ou alguma coisa que apenas agora começamos a compreender; o denso mistério da gravidade é a nossa porta de entrada no oceano de tempo que nos levará até ao instante da criação.
O James Webb já nos dá respostas a perguntas que ainda nem sequer colocamos e a jornada só agora começou. Perante o coração apertado, perante o puro deslumbramento, sentimo-nos como uma criança naquele primeiro dia na margem de uma praia, olhando o mar, e lá longe, o horizonte. Lembram-se? Estamos de volta.
Cinema hipersónico
Escrito em: 2022-06-12
“Top Gun – Maverick” é um triunfo do cinema moderno. E Tom Cruise cimenta-se ainda mais como o mais valioso e competente produtor da actualidade. Depois dos excelentes “Rogue Nation” e “Fallout”, dois tratados conclusivos de como fazer filmes de…
“Top Gun – Maverick” é um triunfo do cinema moderno. E Tom Cruise cimenta-se ainda mais como o mais valioso e competente produtor da actualidade. Depois dos excelentes “Rogue Nation” e “Fallout”, dois tratados conclusivos de como fazer filmes de ação, acresce este segundo capítulo da saga do Capitão Pete “Maverick” Mitchell, agora sem o seu “Wing man” Iceman ( Val Kilmer num papel quase de cameo e com uma degradação física já indisfarçável ), liderando uma equipa de jovens ases numa missão impossível (não resisti), com flashes do passado, a dose certa e indispensável de azeite homo-erótico, nem faltou volleyball de praia, onde os homens tinham menos roupa do que a actriz, ok, e sobretudo uma sensibilidade incomum neste segmento de filmes, doseando correctamente a herança de Tony Scott com o pragmatismo do envelhecimento das personagens, a factura do tempo, e até o contexto político (excelente a introdução do paradigma da substituição dos pilotos pelos drones, por exemplo).
Mas “Top Gun – Maverick” é sobretudo um triunfo técnico; o filme foi rodado usando caças F-18 reais adaptados para poderem incorporar câmeras IMAX especialmente modificadas para o efeito, os actores voaram de facto nas aeronavas em maior parte das cenas, a esmagadora maioria dos efeitos que vemos foram práticos e feitos “in camera”, e, claro, é mesmo Tom Cruise que vemos pilotando a sua Kawasaki com o pôr do sol laranja em plano de fundo. Que mais podemos querer? Absolutamente imperdível, um espectáculo total e arrebatador, simbólico da excelência técnica do cinema actual.
Geração instagram
Escrito em: 2022-06-01
É já indubitavelmente um dos maiores acontecimentos do streaming e da nossa cultura pop contemporânea esta “reescrita” da nova adolescência, uma repintura do quadro do amadurecimento sexual no mundo do egoísmo, das drogas e da ausência interior. A geração Instagram,…
É já indubitavelmente um dos maiores acontecimentos do streaming e da nossa cultura pop contemporânea esta “reescrita” da nova adolescência, uma repintura do quadro do amadurecimento sexual no mundo do egoísmo, das drogas e da ausência interior. A geração Instagram, em que o ser humano anda sempre despido onde quer que vá, é retratada com a crueza necessária para nos transmitir o labirinto desta prisão emocional, pessoas que parece que nunca saem do lugar, que apenas dizem que querem sem nunca de facto conquistarem o que quer que seja. Produzida, entre outros, por Drake, um dos mais conhecidos rappers da actualidade, e em que cada episódio da 1a temporada é um título de um sucesso rap, é um remake de uma série Israelita homónima, que sublinhava ainda mais o confinamento emocional das suas personagens entre os muros ideológicos da Israel do sec 21, sendo que a versão americana se presta a ser além disso um manifesto visual que usa uma edição inteligente e uma fotografia repleta de cores primárias para nos criar um sentimento extra de sobressalto e náusea.
“Euphoria” retrata a vida de uma drogada, a Rue, e a sua autoestrada de degradação, questionamento, e auto destruição lenta, o caminho que percorre junto com os seus amigos, pais, e conhecidos num universo povoado de porno, pénis erectos, violência, inveja, e um grande vazio emocional; essa geração zombificada por uma sociedade centrada na juventude e na beleza, é aqui retratada numa série de reflexões de uma drogada que na sua vontade de lhe escapar nos obriga por isso a olhar de fora. E é esse olhar propositadamente exterior que é tão incómodo. Sem própriamente nada de muito novo na maneira como nos entrega a história, e com uma terraplanagem política demasiado evidente (o racismo não existe, o bullying não existe, as gordas sem bodyshaming, os transexuais não são vítimas de nada e os negros até vivem em boas casas e vão estudar para a faculdade), “Euphoria” acaba por ser a grande pedrada no charco do streaming deste início de década pela ousadia e pela vontade de falar da adolescência de forma desapaixonada e crua, sem o bullshit do costume. A geração que empina o cu no Instagram como nunca a viu.
Horror sem fim
Escrito em: 2022-05-23
É complicado falar de “Martyrs”. Como objecto artístico em si, explora as fronteiras possíveis (admissíveis?) do cinema de horror, levando ao limite as suas convenções, pisando o arame farpado do desconforto do espectador, e neste sentido, “Martyrs” é uma obra…
É complicado falar de “Martyrs”. Como objecto artístico em si, explora as fronteiras possíveis (admissíveis?) do cinema de horror, levando ao limite as suas convenções, pisando o arame farpado do desconforto do espectador, e neste sentido, “Martyrs” é uma obra extrema e de extremos e talvez por isso, ou mais por isso, encontra de mim e de muitos a reverência de quem entende o caminho que o artista tem de fazer antes de chegar a um cume, como é de facto este filme horrível no sentido lato, tenebroso e sem esperança, onde nos remexemos na cadeira durante duas horas e tal perante uma sinfonia gore sanguinolenta metodicamente executada e planeada.
O último acto então é algo para experienciar, além de simplesmente “testemunhar”, e ver uma personagem a ser torturada por mais de meia hora é, pelo menos na minha assunção, a minha definição de “limite”; e daqui podemos desencadear a reflexão sobre os limites do próprio objecto artístico em si. Em “Martyrs” não há um único segundo de sexo, porque aqui a pornografia é outra, muito mais punjente e perigosa: a violência levada ao limite do concebível, e esta pornografia da violência é encenada de uma forma que nos provoca desconforto milimétrico, revolta automática e um sentimento vazio de quem escapou a uma armadilha por pouco; a armadilha dos sentidos, prisioneiros naquela ultima meia hora de puro e destilado horror. Objecto de culto e o filme que abriu uma frincha polémica para o filão de onde veio “The Human Centipede (First Sequence)”, executado com mestria por um naipe de artistas de excepção, na realização, make-up, fotografia e efeitos visuais, continua a ser até ao presente um dos filmes mais extremos da história do cinema.
Para ver apenas se tiver estômago.
Herói sombrio
Escrito em: 2022-03-17
Num embrulho visual invulgar proporcionado pelo talento de Greig Fraser, o mesmo director de fotografia de “Dune”, eis que respondemos ao batsinal de Matt Reeves para este muito aguardado “The Batman”; uma história estranhamente melancólica e cautelar sobre a corrupção…
Num embrulho visual invulgar proporcionado pelo talento de Greig Fraser, o mesmo director de fotografia de “Dune”, eis que respondemos ao batsinal de Matt Reeves para este muito aguardado “The Batman”; uma história estranhamente melancólica e cautelar sobre a corrupção e os valores da honestidade, os labirintos escuros “noir” que Robert Pattinson, perfeito no papel, percorre sem hesitação, rosto fechado e homem de poucas palavras, na sua solidão herdada do caos. Não tem a dimensão operática dos filmes de Nolan, nem a alma gótica de Tim Burton; com momentos evitáveis, como a cena ridícula do skydive, completamente falhada, ou os bandidos em morte cerebral que não sabem apontar à cabeça, enfim, mas que empresta à personagem um interessante ângulo de cinema noir, fazendo do homem morcego um Detective desvendando um caso de corrupção que infecta a cidade escura de chuva perpétua, coadjuvado pela bela Zoe Kravitz, uma espécie de contrapeso humano com as suas fraquezas e dúvidas.
Um morcego com alma solitária, a quem não falta nem a voz off para o sentirmos mais próximo e carnal, mais violento quiçá, mais belo fotograficamente, mas por outro lado mais frio e ausente, distante. Um filme deslumbrante ainda que imperfeito como muitas vezes tem de ser. Imperdível.